Links: Gabriel García Márquez

Gabriel García Márquez in Mexico City on March 29, 2004. © The Richard Avedon Foundation.

Gabriel García Márquez in Mexico City on March 29, 2004. © The Richard Avedon Foundation.

  • O jornalista Mário Magalhães relatou em seu blog que descobriu, em 2007, que Gabo sofria com a perda da memória, mas preferiu não divulgar a informação. Leia neste link.
  • A BBC Brasil lista 5 personagens inesquecíveis das obras de Gabriel García Márquez.
  • O G1 traz um áudio com a leitura feita pelo autor de um trecho de Cem Anos de Solidão.
  • Aqui, uma entrevista de Gabo para a Paris Review (em inglês).
  • Opera Mundi: 10 livros essenciais para entender Gabriel García Márquez.
  • Mia Couto, durante participação na 2ª Bienal do Livro de Brasília, sobre a morte de Gabo: “Ele terá que morrer várias vezes, porque a vida dele está na obra”.
  • Um pouco sobre a morte e a vida do autor no The New York Times.
  • Salon: 4 canções que você nem imaginava que foram inspiradas por Gabriel García Márquez.
  • O obituário de Gabo que foi publicado no The Telegraph.

[Poema] A invenção do amor – Daniel Filipe

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Daniel Filipe, poeta e jornalista natural de Cabo Verde, nascido em 1925 e falecido em 1964, em Portugal. O poema seguinte foi escrito e publicado durante o governo ditatorial de Salazar. Daniel Filipe foi um preso político, perseguido e torturado durante o regime da ditadura.

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Em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas janelas dos autocarros
mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de aparelhos de rádio e
detergentes
na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da nossa
esperança de fuga
um cartaz denuncia o nosso amor

Em letras enormes do tamanho
do medo da solidão da angústia
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de conversa
e inventaram o amor com carácter de urgência
deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia quotidiana

Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração
e fome de ternura
e souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio A descoberta A estranheza
de um sorriso natural e inesperado

Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
Embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativo

Um homem uma mulher um cartaz de denúncia
colado em todas as esquinas da cidade
A rádio já falou A TV anuncia
iminente a captura A policia de costumes avisada
procura os dois amantes nos becos e avenidas
Onde houver uma flor rubra e essencial
é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta
fechada para o mundo
É preciso encontrá-los antes que seja tarde
Antes que o exemplo frutifique
Antes que a invenção do amor se processe em cadeia

Há pesadas sanções paras os que auxiliarem os fugitivos

Chamem as tropas aquarteladas na província
convoquem os reservistas os bombeiros os elementos da defesa passiva
Todos
Decrete-se a lei marcial com todas as suas consequências
O perigo justifica-o
Um homem e uma mulher
conheceram-se amaram-se perderam-se no labirinto da cidade
É indispensável encontrá-los dominá-los convencê-los
antes que seja demasiado tarde
e a memória da infância nos jardins escondidos
acorde a tolerância no coração das pessoas

Fechem as escolas
Sobretudo protejam as crianças da contaminação
Uma agência comunica que algures ao sul do rio
um menino pediu uma rosa vermelha
e chorou nervosamente porque lha recusaram
Segundo o director da sua escola é um pequeno triste
Inexplicavelmente dado aos longos silêncios e aos choros sem razão
Aplicado no entanto Respeitador da disciplina
Um caso típico de inadaptação congénita disseram os psicólogos
Ainda bem que se revelou a tempo
Vai ser internado
e submetido a um tratamento especial de recuperação
Mas é possível que haja outros. É absoIutamente vital
que o diagnóstico se faça no período primário da doença
E também que se evite o contágio com o homem e a mulher
de que se fala no cartaz colado em todas as esquinas da cidade

Está em jogo o destino da civilização que construímos
o destino das máquinas das bombas de hidrogénio
das normas de discriminação racial
o futuro da estrutura industrial de que nos orgulhamos
a verdade incontroversa das declarações políticas

Procurem os guardas dos antigos universos concentracionários
precisamos da sua experiência onde quer que se escondam
ao temor do castigo

Que todos estejam a postos
Vigilância é a palavra de ordem
Atenção ao homem e à mulher de que se fala nos cartazes
À mais ligeira dúvida não hesitem denunciem
Telefonem à polícia ao comissariado ao Governo Civil
não precisam de dar o nome e a morada
e garante-se que nenhuma perseguição será movida
nos casos em que a denúncia venha a verificar-se falsa

Organizem em cada bairro em cada rua em cada prédio
comissões de vigilância. Está em jogo a cidade
o país a civilização do ocidente
esse homem e essa mulher têm de ser presos
mesmo que para isso tenhamos de recorrer às medidas mais drásticas

Por decisão governamental estão suspensas as liberdades individuais
a inviolabilidade do domicílio o habeas corpus o sigilo da correspondência
Em qualquer parte da cidade um homem e uma mulher amam-se ilegalmente
espreitam a rua pelo intervalo das persianas
beijam-se soluçam baixo e enfrentam a hostilidade nocturna
É preciso encontrá-los
É indispensável descobri-los
Escutem cuidadosamente a todas as portas antes de bater
É possível que cantem
Mas defendam-se de entender a sua voz
Alguém que os escutou
deixou cair as armas e mergulhou nas mãos o rosto banhado de lágrimas
E quando foi interrogado em Tribunal de Guerra
respondeu que a voz e as palavras o faziam feliz
Lhe lembravam a infância
Campos verdes floridos Água simples correndo A brisa nas montanhas

Foi condenado à morte é evidente
É preciso evitar um mal maior
Mas caminhou cantando para o muro da execução
foi necessário amordaçá-lo e mesmo assim desprendia-se dele
um misterioso halo de uma felicidade incorrupta

Impõe-se sistematizar as buscas Não vale a pena procurá-los
nos campos de futebol no silêncio das igrejas nas boîtes com orquestra privativa
Não estarão nunca aí
Procurem-nos nas ruas suburbanas onde nada acontece
A identificação é fácil
Onde estiverem estará também pousado sobre a porta
um pássaro desconhecido e admirável
ou florirá na soleira a mancha vegetal de uma flor luminosa
Será então aí
Engatilhem as armas invadam a casa disparem à queima roupa
Um tiro no coração de cada um
Vê-los-ão possivelmente dissolver-se no ar Mas estará completo o esconjuro
e podereis voltar alegremente para junto dos filhos da mulher

Mais ai de vós se sentirdes de súbito o desejo de deixar correr o pranto
Quer dizer que fostes contagiados Que estais também perdidos para nós
É preciso nesse caso ter coragem para desfechar na fronte
o tiro indispensável
Não há outra saída A cidade o exige
Se um homem de repente interromper as pesquisas
e perguntar quem é e o que faz ali de armas na mão
já sabeis o que tendes a fazer Matai-o Amigo irmão que seja
matai-o Mesmo que tenha comido à vossa mesa e crescido a vosso lado
matai-o Talvez que ao enquadrá-lo na mira da espingarda
os seus olhos vos fitem com sobre-humana náusea
e deslizem depois numa tristeza líquida
até ao fim da noite Evitai o apelo a prece derradeira
um só golpe mortal misericordioso basta
para impor o silêncio secreto e inviolável

Procurem a mulher e o homem que num bar
de hotel se encontraram numa tarde de chuva
Se tanto for preciso estabeleçam barricadas
senhas salvo-condutos horas de recolher
censura prévia à Imprensa tribunais de excepção
Para bem da cidade do país da cultura
é preciso encontrar o casal fugitivo
que inventou o amor com carácter de urgência

Os jornais da manhã publicam a notícia
de que os viram passar de mãos dadas sorrindo
numa rua serena debruada de acácias
Um velho sem família a testemunha diz
ter sentido de súbito uma estranha paz interior
uma voz desprendendo um cheiro a primavera
o doce bafo quente da adolescência longínqua
No inquérito oficial atónito afirmou
que o homem e a mulher tinham estrelas na fronte
e caminhavam envoltos numa cortina de música
com gestos naturais alheios Crê-se
que a situação vai atingir o climax
e a polícia poderá cumprir o seu dever

Um homem uma mulher um cartaz de denúncia
A voz do locutor definitiva nítida
Manchetes cor de sangue no rosto dos jornais

É PRECISO ENCONTRÁ-LOS ANTES QUE SEJA TARDE

Já não basta o silêncio a espera conivente o medo inexplicado
a vida igual a sempre conversas de negócios
esperanças de emprego contrabando de drogas aluguer de automóveis
Já não basta ficar frente ao copo vazio no café povoado
ou marinheiro em terra a afogar a distância
no corpo sem mistério da prostituta anónima
Algures no labirinto da cidade um homem e uma mulher
amam-se espreitam a rua pelo intervalo das persianas
constroem com urgência um universo do amor
E é preciso encontrá-los E é preciso encontrá-los

Importa perguntar em que rua se escondem
em que lugar oculto permanecem resistem
sonham meses futuros continentes à espera
Em que sombra se apagam em que suave e cúmplice
abrigo fraternal deixam correr o tempo
de sentidos cerrados ao estrépito das armas
Que mãos desconhecidas apertam as suas
no silêncio pressago da cidade inimiga

Onde quer que desfraldem o cântico sereno
rasgam densos limites entre o dia e a noite
E é preciso ir mais longe
destruir para sempre o pecado da infância
erguer muros de prisão em circulos fechados
impor a violência a tirania o ódio

Entretanto das esquinas escorre em letras enormes
a denúncia total do homem e da mulher
que no bar em penumbra numa tarde de chuva
inventaram o amor com carácter de urgência

COMUNICADO GOVERNAMENTAL À IMPRENSA

Por diversas razões sabe-se que não deixaram a cidade
o nosso sistema policial é óptimo estão vigiadas todas as saídas
encerramos o aeroporto patrulhamos os cais
há inspectores disfarçados em todas as gares de caminhos de ferro

É na cidade que é preciso procurá-los
incansavelmente sem desfalecimentos
Uma tarefa para um milhão de habitantes
todos são necessários
todos são necessários
Não sem preocupem com os gastos a Assembleia votou um crédito especial
e o ministro das Finanças
tem já prontas as bases de um novo imposto de Salvação Pública

Depois das seis da tarde é proibido circular
Avisa-se a população de que as forças da ordem
atirarão sem prevenir sobre quem quer que seja
depois daquela hora Esta madrugada por exemplo
uma patrulha da Guarda matou no Cais da Areia
um marinheiro grego que regressava ao seu navio

Quando chegaram junto dele acenou aos soldados
disse qualquer coisa em voz baixa e fechou os olhos e morreu
Tinha trinta anos e uma família à espera numa aldeia do Peloponeso
O cônsul tomou conhecimento da ocorrência e aceitou as desculpas
do Governo pelo engano cometido
Afinal tratava-se apenas de um marinheiro qualquer
Todos compreenderam que não era caso para um protesto diplomático
e depois o homem e a mulher que a policia procura
representam um perigo para nós e para a Grécia
para todos os países do hemisfério ocidental
Valem bem o sacrifício de um marinheiro anónimo
que regressava ao seu navio depois da hora estabelecida
sujo insignificante e porventura bêbado

SEGUE-SE UM PROGRAMA DE MÚSICA DE DANÇA

Divirtam-se atordoem-se mas não esqueçam o homem e a mulher
Escondidos em qualquer parte da cidade
Repete-se é indispensável encontrá-los
Um grupo de cidadãos de relevo ofereceu uma importante recompensa
destinada a quem prestar informações que levem à captura do casal fugitivo
Apela-se para o civismo de todos os habitantes
A questão está posta É preciso resoIvê-la
para que a vida reentre na normalidade habitual
Investigamos nos arquivos Nada consta
Era um homem como qualquer outro
com um emprego de trinta e oito horas semanais
cinema aos sábados à noite
domingos sem programa
e gosto pelos livros de ficção cientifica
Os vizinhos nunca notaram nada de especial
vinha cedo para casa
não tinha televisão,
deitava-se sobre a cama logo após o jantar
e adormecia sem esforço

Não voltou ao emprego o quarto está fechado
deixou em meio as «Crónicas marcianas»
perdeu-se precipitadamente no labirinto da cidade
à saída do hotel numa tarde de chuva
O pouco que se sabe da mulher autoriza-nos a crer
que se trata de uma rapariga até aqui vulgar
Nenhum sinal característico nenhum hábito digno de nota
Gostava de gatos dizem Mas mesmo isso não é certo
Trabalhava numa fábrica de têxteis como secretária da gerência
era bem paga e tinha semana inglesa
passava as férias na Costa da Caparica.

Ninguém lhe conhecia uma aventura
Em quatro anos de emprego só faltou uma vez
quando o pai sofreu um colapso cardíaco
Não pedia empréstimos na Caixa Usava saia e blusa
e um impermeável vermelho no dia em que desapareceu

Esperam por ela em casa: duas cartas de amigas
o último número de uma revista de modas
a boneca espanhola que lhe deram aos sete anos
Ficou provado que não se conheciam
Encontraram-se ocasionalmente num bar de hotel numa tarde de chuva
sorriram inventaram o amor com carácter de urgência
mergulharam cantando no coração da cidade

Importa descobri-los onde quer que se escondam
antes que seja demasiado tarde
e o amor como um rio inunde as alamedas
praças becos calçadas quebrando nas esquinas

Já não podem escapar Foi tudo calculado
com rigores matemáticos Estabeleceu-se o cerco
A policia e o exército estão a postos Prevê-se
para breve a captura do casal fugitivo
(Mas um grito de esperança inconsequente vem
do fundo da noite envolver a cidade
au bout du chagrin une fenêtre ouverte
une fenêtre eclairée)

Daniel Filipe, poeta caboverdiano. Em “A invenção do amor e outros poemas”, de 1961; retirado daqui.

[Crônica] Do diário de um homem de letras – João Ubaldo Ribeiro

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Que frase de Proust me ocorreu, enquanto distraidamente fazia a barba? Nenhuma, muito menos um verso de Mallarmé (preciso decorar um urgentemente, sou amigo do poeta Geraldo Carneiro e passo muita vergonha com a erudição dele). Mas aproveito que ainda não amanheceu e taco um verso – ou dois, não me lembro bem – de Byron, que decorei na remota juventude, para impressionar as moças (não impressionei, mas, quem sabe, agora talvez impressione as velhas). “Twixt night and morn, upon the horizon’s verge, Life hovers like a star.” “Entre a noite e a manhã, sobre a orla(1) do horizonte, a Vida paira como uma estrela.” Não sei bem a que isso se aplica no momento, mesmo porque, apesar de estar tudo escuro aqui no terraço, não há nenhuma estrela à vista. Mas não fica bem para um homem de letras começar um trecho de diário sem lembrar uma frase ou verso ilustre, a reputação requer um constante burnir. Necessário achar imediatamente meus dicionários de citações, para me lembrar repentinamente de pérolas literárias e poder manter este diário. Quem pensa que a vida do homem de letras é mole está muito enganado.

Esperar clarear, para andar no calçadão. Quando me recomendou arejar o juízo andando no calçadão, meu combativo analista me disse: “Você vai fazer uma coisa que vai mudar a sua vida.” Como todo mundo, principalmente escritor, quer mudar de vida, topei. De fato mudei, agora fico bestando, esperando clarear para andar no calçadão. E ando no calçadão, é óbvio, onde sou regularmente humilhado pelo capenguinha. Pensar em alguma observação inteligente para fazer a respeito disso.

Andando no calçadão. Continuo não gostando, mas creio que já posso considerar-me um veterano. Ou pelo menos não sou mais um iniciante, já tenho conhecidos e já fico de olho para a hora em que duas moças, esplêndidas como potrancas, passam em corridinha leve, com os coroas a cochichar “ai, meu tempo”. E a moça de bicicleta e short meio saiote ao vento, ai meu tempo. O capenguinha, desta vez, passou na direção oposta, não houve humilhação, mas o tempo provaria que eu devia ter prestado mais atenção a seu olhar malquerente. O pessoal do programa saúde continua nos quiosques, rebatendo a noite com uma cervejinha e uns cigarrinhos. Cogito em, desta vez, encurtar a jornada, mas manda o brio que prossiga até a lata de lixo do Arpoador (haverá nisso algo de metafórico?) que marca a metade de meu percurso e, além de tudo, ia tomar um esbregue do analista. Recebo uma beijoca de uma senhora encanecida, que se confessa minha fã. Emocionado, fecho os olhos e penso que foi a moça do saiote. Agradeço penhoradamente e sigo em frente glorioso. O senhor que corre com a cara de quem acaba de perder cem mil reais no bingo me cumprimenta, o cidadão que caminha como quem está fazendo cocoricocó também. E o capenguinha, com toda a certeza só para me chatear, passa por mim. Deu a volta apenas pelo gostinho de me ultrapassar, o miserável. Mas retorno sem maiores incidentes. Ao atravessar a avenida para tornar à casa, topo com Zé Rubem Fonseca, barbado e embuçado, que finge que não me vê. Deve ter ingressado na carreira de crítico literário. Ou então deve ter acatado um conselho do analista dele. Deixo-o em paz. Mais tarde telefono e digo a ele que meu computador é maior que o dele. Isso mata o bicho.

Ler jornais. Seqüestro, estupro, bala perdida, o vírus Ebola vem aí qualquer hora dessas, tudo faz mal, morreu mais um sujeito de minha idade. Destaque para o futebol japonês, que, aliás, também aparece destacado na TV. Claro que eles serão campeões do mundo assim que entrarem numa Copa. Elementar: vão poder substituir o time inteiro o tempo todo sem ninguém notar, vai ser uma canseira geral no Ocidente. Ao diabo com os jornais, chega de assombração, vamos trabalhar, que a vida é breve.

Primeiro o expediente. Dois fax ( faxes ? Pensando bem, esqueçam que perguntei, chega de gozação com a minha condição de acadêmico). Dois esse negócio que chega pelo fio do telefone, ambos do Ministério da Cultura e ambos endereçados a João Ubaldo Ribeiro Filho. Respondo ou não respondo, já que não sou João Ubaldo Ribeiro Filho (e, aliás, prefiro João Ubaldo de Oliveira, já estou mais acostumado)? Opto por não responder, não quero assumir falsa identidade. Além disso, essa coisa de João Ubaldo Ribeiro Filho pode não cair bem com minha mulher. Fax à cesta. Que mais? Diversos convites para trabalhar de graça, como sempre. Convites à cesta. Originais que querem que eu leia. Não leio, mas não tenho coragem de atirá-los à cesta e ponho-os na pilha piramidal que já me entope o gabinete e já me rendeu ameaças de divórcio. Cartas a responder. Respondo depois.

Trabalhando em mais uma obra-prima. Quanto mais escrevo, mais difícil fica. Talvez deva dar outra andada no calçadão, antes de pegar nisso. Não, não, nada de correr da presa, ao trabalho. Além disso, como tomar um uísque escondido no Diagonal, no fim da manhã, sem muita culpa? Não, senhor, escrever. Que coisa mais besta, esta, o sujeito sentado aqui, escrevendo uma porção de histórias que nunca aconteceram, sobre gente que nunca existiu. Um amigo meu, quando me queixei, me disse que não fui eu quem inventou isso, que, desde que o homem aprendeu a escrever, escreve histórias. Ou até antes de escrever, como no caso de Homero. Portanto, não tem nada de ficar questionando, tem é de sentar aqui em frente ao monitor e mandar ver. Mando ver, saem umas mixariazinhas desconsoladas. Amanhã eu conserto, ou então depois de amanhã. Mas ninguém pode dizer que não trabalhei, Deus é testemunha. Uísque no Diagonal.

Uísque no Diagonal, na companhia de Rosa Magnólia, Zé Fuzileiro, Carlinhos Judeu, Paulinho Cachoeira, Toninho Plutônio, Tião Cheiroso, Rubem Magistrado, Geraldinho CD e outros renomados membros de minha patota. A vida é bela. Papo de alto nível, hoje versando sobre comida baiana. Saio intelectualmente renovado.

A tarde passa fugaz, abate-se o atro véu da noite sobre meu terraço. (Podia dizer que essa frase é de alguém, mas tem leitor chato que vai pesquisar e depois me escreve espinafrações.) Vou procurar os dicionários de citações. Não, não vou, amanhã eu procuro. Em lugar disso, um passatempo intelectual, digno de um homem de letras. E assim, diante do computador, clico o mouse no ícone  Games e inicio uma desafiante paciência de baralho. Aquela mais difícil, que requer raciocínio, é claro.

(1) Espero a gratidão dos leitores, por não haver utilizado a palavra “fímbria”.

-=-=-=-=-


O texto acima foi transcrito da coluna dominical de O GLOBO/1995.  (Publicado posteriormente no livro “O Conselheiro Come”, Editora Nova Fronteira – Rio de Janeiro, 2000, pág. 62).

Retirado daqui.

[Vídeo] Poema de José Luis Peixoto para o Festcineamazonia 2013

(Poema inédito, feito especialmente para a antologia de textos do Festcinamazonia 2013)

-=-=-

(Do site do autor):

José Luís Peixoto participará na itinerância do Festival Festcineamazonia 2013.

Ao longo de mais de duas semanas, ao longo do rio Guaporé, fará apresentações e leituras em 13 cidades brasileiras e bolivianas, nas duas margens do rio, com a seguinte agenda:

– Brasil: Guajará-Mirim (9/8); Surpresa (12/8); Forte Príncipe (14/8); Costa Marques (16/8); Quilombo de Santo António (18/8); Quilombo de Pedras Negras (20/8); Porto Rolim (22/8) e Pimenteiras (25/8).

– Bolívia: Guayará-Merim (10/8); Buena Vista (15/8); Versalles (19/8); Mategua (21/8) e Remanso (24/8).

Em todas as apresentações será oferecida uma antologia de textos de José Luís Peixoto, publicada exclusivamente para estas apresentações, em português e em castelhano, intitulada Um poeta no Guaporé:

[Poesia visual] “Gota a gota” – Ana Cristina César

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ana_cristina_cesar2“Cada busca inútil me traz uma impressão longínqua de despedaçar-se: chegou-se a algum lugar, afinal, pois chegamos quando nos dispomos a continuar; mas a que custo! Seria talvez mais desejável para nós, gente, não chegar, achando quem sabe um último suspiro depois de um último passo.

Cada noite que desce sobre uma espera vã traz-me à boca um gosto de vinagre, aos ouvidos um som qualquer que ensurdeça. Ninguém se disse adeus, e na ausência de luz alguém está morrendo sozinho.

Cada vez que não morremos parece-me que demos mais um passo para trás, progredimos no sentido inverso, chegamos, pois que nos levantamos para prosseguir. E nestes dias de indolência, oco, ânsia oculta, uma sensação de interminabilidade sobe, sobe, pelas veias sobe. Nada. Esta falta de segredo é uma chegada, no seu verdadeiro significado: chegada é sempre escala; ponto para respirar; pela penúltima vez, quem sabe.

Esta brisa marinha semimágica que entra tão sub-repticiamente pela janela denuncia o quê? ou liquefaz meus suspiros em mistério tátil e tácito. Meu Deus, de novo a brisa a me desalienar e desalinhar, despertando o borbulhar que o ano inteirinho pressentiu. Suspirosa e oleosa, uma tonta. Ligo o rádio. Será que eu fui engolida inteira? Faz de conta que a minha digestão é fácil, que as grandes partes se derreteram já, que os ossos cuspidos estão arrumados, insensíveis e ressecando. Ouvi dizer, li em algum lugar: Ana é idiota. Se conspirassem contra mim, talvez eu fosse. A noite despencou e quebrou três estrelas.”

(Ana Cristina César, de “Inéditos e dispersos”. Retirado daqui)

[Crônica] Resposta a uma Jovem Estudante de Letras – Lygia Fagundes Telles

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— Por que escrevo? Ah, que difícil responder a essa pergunta. Tentarei dar alguma resposta e sei que já estou entrando assim numa zona imprecisa. Vaga. O escritor escreve porque tenta recompor, quem sabe?, um mundo perdido. Os amores perdidos. Não será uma tentativa de recuperar a família que ficou lá longe, assim despedaçada? Ou não será o próprio eu despedaçado que ele está querendo resgatar? E se nessas personagens que procura desembrulhar ele não estiver tentando, na realidade, desembrulhar a si mesmo?

— O paraíso perdido. Nesse paraíso não está a infância? Veja bem, respondo à sua pergunta com outras perguntas e de repente cheguei à minha infância. Uma infância feliz? Infeliz? Aqueles dias de tanto sol e nuvens brancas que se transformavam inesperadamente em raios despejando as tempestades, não, nenhuma nitidez na menininha que ria ou chorava aos gritos.

Sei que gostava de me deitar no chão para ficar olhando as nuvens meio paradas, formando figuras. Também gostava de ouvir minha mãe tocar piano, ela era pianista. E de sentir o cheiro forte do doce de goiaba que ela mexia no tacho de cobre. Meu pai fumava charuto e eu gostava de aspirar aquela fumaça azul, ah, o anel vermelho-dourado que ele tirava do charuto e eu enfiava no dedo. Mas o anel era largo, eu tinha que fechar a mão para que ele não caísse.

Minha mãe rezava ajoelhada diante do quadro do Sagrado Coração de Jesus. Rezava em voz alta e pedia milagres enquanto eu ia me esconder no quintal. Costurava muito pedalando na máquina Singer mas acho que gostava mesmo era de tocar piano.

Meu pai era muito alto, falava grosso, usava gravata-borboleta e palheta branca com uma larga fita preta. Na delegacia era chamado de doutor e eu imaginava que devia ser um homem importante porque todo mundo, fardado ou não, obedecia quando ele dava ordens. Mas penso que gostava mesmo era de jogar, apostava nos números. Herdei o vício, eu jogo com as palavras, aposto nas palavras, um jogo perigoso? Não sei, sei que é fascinante.

Hoje nós perdemos mas amanhã a gente ganha. Roleta. Eu nem respirava enquanto a bolinha de marfim vinha aos pulos e parava de repente. Então o homem magro estendia a pá comprida e começava a recolher as fichas. As nossas fichas. Mas ele não parecia se preocupar muito porque logo em seguida, com aqueles mesmos gestos largos, recomeçava a amontoar outras fichas nos números da mesa. Eu achava lindo aquele seu gesto amplo, generoso mas ainda assim, tremia. Às vezes, ele me consultava, E agora? No vermelho?

Disse um dia que ganhou num jogo de cartas uma parte grande do Morro do Ouro. Ele é mesmo de ouro, pai? perguntei e ele acendeu o charuto: Todo de ouro e sou o dono de um pedaço disso tudo. Era um fim de tarde, o sol vermelhão mergulhando em chamas por entre as pedras. Olhei e vi o morro inteiro dourado.

— As pajens de mãos fortes e duras me esfregavam com força quando me davam banho. E faziam os tais papelotes bem apertados em dia de procissão, meu cabelo era escorrido e anjo tem que ter o cabelo crespo. Sou do Signo de Áries, domicílio do planeta Marte. A cor do signo é o vermelho, a cor da paixão. Da guerra, “Estou em paz com a minha guerra”, digo citando Camões.

Mas também aposto no verde. A minha bandeira (se tivesse uma bandeira) seria metade vermelha e metade verde, gosto muito do verde, a única cor que amadurece e que me faz pensar na esperança. Que se mistura ao vermelho com seus laivos de cólera, às vezes, a cólera.

— Leitores? Eu sei, eu sei, os que escapam do analfabetismo e da miséria, esses não têm o hábito da leitura. Ou quando vão às livrarias, como obedientes colonizados, preferem os autores estrangeiros que naturalmente estão mais expostos. E fortalecidos  ela propaganda da televisão e do cinema. Ainda assim, essa servidão da esperança que herdei daquele pai jogador apalpando os bolsos vazios no fim da noite. Les jeux sont faits! avisava o homem magro com cara de destino. Mas amanhã a gente ganha.

Leitores, leitores. Não somos lidos na América Latina, quem nos conhece na Venezuela? No Chile? No encontro La Nueva Narrativa Latinoamericana, na Colômbia, fui para falar da mulher na literatura brasileira e acabei informando ao público qual era a língua falada no Brasil, perguntaram e eu respondi, falamos e escrevemos em português mas o modo é brasileiro, acrescentei bem-humorada, não perder o humor. Informei ainda quais eram os nossos usos e costumes, sobre os quais os simpáticos camaradas de letras tinham uma vaga ideia com aqueles coloridos de folclore.

— Sou escritora e sou mulher — ofício e condição humana duplamente difíceis de contornar, principalmente quando me lembro como o país (a mentalidade) interferiu negativamente no meu processo de crescimento como profissional. Eu era reprimida mas disfarçava bem a minha timidez em meio à imensa carga de convenções cristalizadas na época. Não baixar a guarda, repetia a mim mesma, não baixar a guarda! Tinha aprendido esgrima nas aulas de Educação Física mas não era atenta porque vinha o adversário e haaá! espetava com a ponta do florete o meu coração exposto, era um pequeno coração de feltro vermelho pregado no lado esquerdo da túnica. Penso hoje que a minha libertação foi facilitada durante as extraordinárias alterações pelas quais passou o Brasil desde a minha adolescência até os dias atuais.

Segunda Guerra Mundial. Eu era muito jovem quando estudava na Faculdade do Largo de São Francisco e ao meio-dia saía correndo para tomar uma coalhada. Em seguida, assinar ponto na Secretaria de Agricultura onde era uma pequena funcionária. Ainda assim, arrumava tempo para a subversão, namorava pouco, é verdade, mas fui presença constante nas passeatas contra a ditadura de Getulio Vargas. E agora eu me lembro de uma famosa passeata que fizemos com um lenço preto amarrado na boca, o chefe da Segurança Pública já tinha avisado, podíamos nos agrupar mas não falar, seria a passeata do silêncio. Daí a ideia do lenço. Eu me lembro, fui encarregada com outro colega de ir comprar a gaze preta numa loja de tecidos na Rua Direita.

Então pedi ao caixeiro, quero aquela gaze ou filó preto, desse tipo para cobrir o caixão. Ele trouxe a peça para o balcão, apanhou a medida métrica e quis saber quanto devia cortar. Fiquei na dúvida, a passeata ia ser concorrida, não? Cochichei com o meu colega e decidimos, Corte até uns três metros, ordenei e o caixeiro arregalou os olhos, Mas o defunto é tão grande assim? Então desatamos a rir, a gente gostava de rir.

— Fala-se em modernização, na valorização da mulher como artista. Mas penso que neste século (segundo uma ideia de Paulo Emílio Sales Gomes) a modernização em geral só modernizou a burguesia. Pertenço, por exemplo, a uma corporação que precisa procurar sempre outros recursos além dos relativamente modestos proporcionados pela atividade literária, são raros os escritores que ficaram ricos com o dinheiro dos livros. Os outros ficam aí se virando na voragem de uma vida que virou um artigo de luxo. Confesso que há muito me vejo reivindicando maior valorização no campo da palavra escrita, Combati o bom combate.

Quanto às mulheres propriamente burguesas, essas não precisam mesmo de nenhum amparo.

— Não somos inocentes e por isso sabemos que há no Brasil três espécies em processo de extinção: a árvore, o índio e o escritor. Mas isso eu escrevi há alguns anos porque não é mais escritor que está em processo de extinção, mas sim o leitor que está em fuga desabalada.

Quanto à árvore creio que não é preciso acrescentar mais nada, que tristeza ver as florestas sendo devastadas. E o índio? Quando andei pela África, um dos homens da Unesco me disse: “Cada vez que morre um velho africano é assim como uma biblioteca que se incendeia”. Será que antes de chegarmos à solução final do nosso problema indígena teremos ainda tempo de captar um pouco desse legado? Um pouco da sua arte e da sua vida nas quais o sagrado e a beleza se confundem para alimentar a nossa cultura e o nosso remorso.

— E resistimos, testemunhas e participantes deste tempo e desta sociedade com o que tem de bom e de ruim. E tem ruim à beça, inspiração é o que não falta aos que escrevem. E falei agora uma palavra que saiu de moda e é insubstituível, inspiração.

Algumas das minhas ficções se inspiraram na imagem de algo que vi e guardei, um objeto? Uma casa ou um bicho? Outras ficções nasceram de uma simples frase que ouvi e registrei e um dia, assim de repente a memória (ou tenha isso o nome que tiver) me devolve a frase que pode inspirar um conto. Há ainda aquelas ficções que nasceram em algum sonho, abismos desse inconsciente que de repente escancara as portas, Saiam todos! A loucura, o vício, a paixão, ah! eu teria que ter o fôlego de sete vidas, assim como os gatos, para escrever sobre esse mar oculto.

(em “Durante aquele estranho chá”, crônicas, lançado pela Companhia das Letras, 2002/2010).

[Poema] Fábrica do Poema – Waly Salomão

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(In memoriam Donna Lina Bo Bardi)

sonho o poema de arquitetura ideal
cuja própria nata de cimento encaixa palavra por
palavra,
tornei-me perito em extrair faíscas das britas
e leite das pedras.
acordo.
e o poema todo se esfarrapa, fiapo por fiapo.
acordo.
o prédio, pedra e cal, esvoaça
como um leve papel solto à mercê do vento
e evola-se, cinza de um corpo esvaído
de qualquer sentido.
acordo,
e o poema-miragem se desfaz
desconstruído como se nunca houvera sido.
acordo!
os olhos chumbados
pelo mingau das almas e os ouvidos moucos,
assim é que saio dos sucessivos sonos:
vão-se os anéis de fumo de ópio
e ficam-se os dedos estarrecidos.

sinédoques, catacreses,
metonímias, aliterações, metáforas, oxímoros
sumidos no sorvedouro.
não deve adiantar grande coisa
permanecer à espreita no topo fantasma
da torre de vigia.
nem a simulação de se afundar no sono.
nem dormir deveras.
pois a questão-chave é:
sob que máscara retornará o recalcado?

(mas eu figuro meu vulto
caminhando até a escrivaninha
e abrindo o caderno de rascunho
onde já se encontra escrito
que a palavra “recalcado” é uma expressão
por demais definida, de sintomatologia cerrada:
assim numa operação de supressão mágica
vou rasurá-la daqui do poema.)

pois a questão-chave é:
sob que máscara retornará?

(de “O mel do melhor”, Rocco, 2001)

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Caros leitores,

Temos o prazer de anunciar o lançamento da sétima edição da Revista Macondo! Houve um considerável atraso para a publicação deste número, mas promovemos a edição com muito orgulho pela possibilidade de oferecer a vocês os trabalhos que a compõem. Esperamos que gostem e aproveitem bem. Boa leitura!

Os editores.

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Envio de material para a oitava edição, bem como dúvidas, críticas e sugestões: colaboracao@revistamacondo.com.br

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Autores desta edição:

Yuri Amaury – Danilo Sales – Ricardo Russano – Élen Rodrigues Gonçalves – Marcelo Feres – Helena Barbagelata – Aurélio Furdela – Caetano Sordi – Bartolomeu Pereira Lucena – Estevão Daminelli – Denise Freitas – Emanuel R. Marques – Patrícia Maia – Henrique Ribeiro da Silva – Rafael Batista